Depois de ver esta aula de Robert Sapolsky, vêm-me à cabeça alguns exemplos de fenómenos religiosos relativamente recentes que se enquadram perfeitamente na sua proposta de análise.
A disfunção esquizotípica de personalidade (DEP, tradução livre do inglês) é uma disfunção de personalidade caracterizada pela necessidade de isolamento social, comportamento estranho e uma tendência marcada para um tipo de pensamente denominado “metamágico”. Este tipo pensamento tem por base um conjunto de crenças estranhas em relação à realidade, normalmente associadas à magia, ao paranormal, à religião ou à ficção científica, e que acabam por influenciar e conduzir o comportamento dos indivíduos afectados. Muitas das vezes, há também um discuso metafórico e estereotipado e uma mentalidade conspirativa ou paranóica. Tudo isto em pessoas que são em tudo o resto normais, que conseguem manter um emprego, votar e conduzir veículos motorizados! Obviamente que na DEP, como em muitas das afectações mentais, existe um gradiente de gravidade. A DEP é uma versão “super-light”, ou o “correspondente heterozigótico” da esquizofrenia, não havendo manifestações tão severas mas sim controladas e contextualizadas.
Qual é então a origem das DEP e como é que os indivíduos afectados co-existem em sociedade? Vários estudos antropológicos mostraram a existência contínua de uma categoria de pessoas “meio-doidas” em todas as culturas humanas. São eles os curandeiros, os espíritas, ou os shamans. São indivíduos que ganham a vida sendo “metamágicos” nas alturas correctas, num contexto social preciso. São eles que falam com os mortos, ou que comunicam com os deuses por razões ritualísticas. O mesmo tipo de episódio, mas surgindo nas “situações erradas” normalmente definem o esquizofrénico e não existe espaço para eles nem nas sociedades tradicionais nem nas contemporâneas. Não deixa contudo de ser engraçado que, ao contrário dos esquizofrénicos, estes indivíduos com um tipo metamágico de pensamento apareçam muitas vezes entre os mais poderosos e bem sucedidos membros da sociedade, gozando de um estatuto que os torna bastante bem sucedidos mesmo ao nivel reprodutivo.
Penso que todos aceitarão que se eu aqui declarar que falo com pessoas mortas, com a virgem Maria ou com Deus isso será um sinal preocupante da minhas saúde mental. No entanto, relatos deste tipo contituem a espinha dorsal da maioria das crenças religiosas. Virgens que dão à luz, mortos de ressuscitam, serpentes que enganam pessoas… quem inventou toda esta mitologia? Não se tratou concerteza de decisões tomadas em grandes reuniões, mas sim (como Sapolsky defende) de invenções de esquizótipos extremamente influentes na história das diversas crenças. Líderes religiosos, que por si mesmos inventaram a teologia ou a ampliaram, como Jesus, S. Paulo, Lutero ou em Portugal, Lúcia.
Lúcia é um exemplo clássico de DEP. Um pensamento altamente metamágico, com visões constantes (mais uma vez nas alturas certas), uma total ausência e mesmo uma aversão ao contacto social, mas uma personalidade carismática que consegui convencer milhares de pessoas que estava a ver uma virgem fumegante em cima de uma azinheira. Nesse aspecto Lúcia é alguém que marcou indelevelmente a religião Católica, e é um exemplo de como alguém com DEP consegue fugir ao estigma de sofrer uma doença mental, para passar a ser alguém que molda as dinâmicas de toda uma sociedade. Quanto aos seus compinchas, como crianças que eram, foram influenciados, embora nunca conseguissem ter a mesmas visões que Lúcia.
Embora não seja totalmente original, Sapolsky é o primeiro que tenta avançar uma explicação para a vantagem evolutiva deste tipo social, que é uma constante ao longo de toda a história humana e que está presente em todas as culturas. Seria interessante no entanto alguém fazer um estudo aprofundado sobre este tipo de fenómenos, principalmente em Portugal onde os estudos sociológicos/antropológicos deste tipo não abundam. Como é óbvio não consigo tocar neste artigo todos os pontos que o autor alcança no vídeo, por isso aconselho vivamente que o vejam.
Deixo-vos ainda uma das suas frases acerca da origem das religiões, absolutamente deliciosa. Referindo-se aos episódios paranóicos de alguns indivíduos esquizofrénicos ou esquizotípicos:
“Get it wrong, and we call it a cult. Get it right, and maybe, for the next few millennia, people won’t have to go to work on your birthday.”
Sapolsky é actualmente professor de Ciências Biológicas e Neurológicas na Universidade de Stanford nos EUA. Embora criado numa família devota de Judeus Ortodoxos, Sapolsky é Ateu.
Texto publicado em paralelo no Portal Ateu
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