Título: A Obra ao Negro (1968)
Autora: Marguerite YourcenarEditor: Dom Quixote
...
...
"Penso para comigo, não raras vezes, que nada no mundo, salvo uma ordem eterna ou uma singular veleidade da matéria em construir algo que a ultrapasse, poderá explicar a razão por que, de dia para dia, me esforço por pensar com um pouco mais de clareza que no dia anterior. [...]
Sempre me há-de maravilhar o facto de esta carne sustentada pelas suas vértebras, de este tronco ligado à cabeça pelo istmo do pescoço e com os membros dispostos simetricamente à sua volta, conter, e talvez produzir, um espírito que tira partido dos meus olhos para ver e dos meus gestos para apalpar... Conheço os seus limites, e sei que lhe falta tempo para ir mais longe, e força, se porventura pudesse dispor de tempo. Mas existe, e, neste momento, ele é aquele que É. Bem sei que se engana, que erra, que por vezes interpreta mal as lições que o mundo lhe ministra, mas sei também que possui o dom de conhecer e não raro rectificar os seus próprios erros.
Já percorri grande parte desta bola onde vivemos; estudei o ponto de fusão dos metais e a germinação das plantas; observei os astros e examinei o interior dos corpos. Sou capaz de extrair, deste tição que aqui está, a noção de peso, e destas chamas a noção de calor. Sei que não sei aquilo que não sei; invejo aqueles que venham a saber mais, mas sei que, tal como eu, terão de medir, pesar, deduzir e desconfiar das deduções alcançadas, distinguir o que há de falso no verdadeiro e levar em conta a eterna mistura da verdade e da falsidade.
Nunca me agarrei fixamente a uma ideia, por temer a confusão em que, sem ela, poderia vir a cair. Nunca temperei um facto verdadeiro com o molho da mentira, para me facilitar a digestão. Nunca deformei os pontos de vista do adversário para mais facilmente ter razão [...]. Ou talvez sim: surpreendi-me nesse acto, mas sempre me repreendi como se repreende um criado desonesto, confiando apenas na promessa que a mim mesmo fiz de vir a proceder melhor.
Sonhei com os meus sonhos; não considero tudo isto mais do que sonhos. Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão. Os triunfos e os perigos que acumulei não são aquilo se pensa: existem outras glórias para além da glória e outras chamas para além das da fogueira. Consegui, praticamente, desafiar as palavras. Hei-de morrer um pouco menos estúpido do que nasci."
"Penso para comigo, não raras vezes, que nada no mundo, salvo uma ordem eterna ou uma singular veleidade da matéria em construir algo que a ultrapasse, poderá explicar a razão por que, de dia para dia, me esforço por pensar com um pouco mais de clareza que no dia anterior. [...]
Sempre me há-de maravilhar o facto de esta carne sustentada pelas suas vértebras, de este tronco ligado à cabeça pelo istmo do pescoço e com os membros dispostos simetricamente à sua volta, conter, e talvez produzir, um espírito que tira partido dos meus olhos para ver e dos meus gestos para apalpar... Conheço os seus limites, e sei que lhe falta tempo para ir mais longe, e força, se porventura pudesse dispor de tempo. Mas existe, e, neste momento, ele é aquele que É. Bem sei que se engana, que erra, que por vezes interpreta mal as lições que o mundo lhe ministra, mas sei também que possui o dom de conhecer e não raro rectificar os seus próprios erros.
Já percorri grande parte desta bola onde vivemos; estudei o ponto de fusão dos metais e a germinação das plantas; observei os astros e examinei o interior dos corpos. Sou capaz de extrair, deste tição que aqui está, a noção de peso, e destas chamas a noção de calor. Sei que não sei aquilo que não sei; invejo aqueles que venham a saber mais, mas sei que, tal como eu, terão de medir, pesar, deduzir e desconfiar das deduções alcançadas, distinguir o que há de falso no verdadeiro e levar em conta a eterna mistura da verdade e da falsidade.
Nunca me agarrei fixamente a uma ideia, por temer a confusão em que, sem ela, poderia vir a cair. Nunca temperei um facto verdadeiro com o molho da mentira, para me facilitar a digestão. Nunca deformei os pontos de vista do adversário para mais facilmente ter razão [...]. Ou talvez sim: surpreendi-me nesse acto, mas sempre me repreendi como se repreende um criado desonesto, confiando apenas na promessa que a mim mesmo fiz de vir a proceder melhor.
Sonhei com os meus sonhos; não considero tudo isto mais do que sonhos. Abstive-me sempre de fazer da verdade um ídolo, preferindo designá-la pelo nome mais humilde de exactidão. Os triunfos e os perigos que acumulei não são aquilo se pensa: existem outras glórias para além da glória e outras chamas para além das da fogueira. Consegui, praticamente, desafiar as palavras. Hei-de morrer um pouco menos estúpido do que nasci."